Como emprestar dinheiro cobrando juros
Pode-se emprestar dinheiro, cobrando juros, sem cometer ilícito. Mútuo feneratício é o nome técnico para essa atividade. Pessoas naturais ou jurídicas têm permissão para exercê-la. Mesmo que não se enquadrem no conceito de "instituição financeira". Contudo, como em grande parte das situações cotidianas, há limites.
Síntese: cabe empréstimo de dinheiro com juros de até 12% ao ano (hoje!). Anual é o período de capitalização mínimo. O contrato pode prever correção monetária. Recomenda-se a adoção de índice geral de preços, como o IPCA.
Assim, num exemplo hipotético de empréstimo de R$ 1 mil. Realizado em 1 de janeiro. Com juros e correção monetária. E vencimento no mesmo dia do ano seguinte. Considerando-se inflação de 10% e juros de 12% anuais, ter-se-ia crédito de R$ 1.220,00. Pode ser negócio interessante...
Atenção ao mais importante: não se pode captar dinheiro de outrem, mediante remuneração, e utilizá-lo em mútuo feneratício. Isso caracterizaria crime. Somente instituições financeiras recebem autorização para esses empreendimentos.
Dito isso. Parte-se para avaliação dos institutos envolvidos no caso.
O QUE É MÚTUO
O Código Civil (CC/02), ao regular o contrato de empréstimo, descreve suas espécies: comodato e mútuo.
Comodato consiste no empréstimo gratuito de coisas infungíveis. São bens com algum traço de individualidade, que não podem ser substituídos por outro da mesma espécie. Por exemplo, uma casa. Existem várias casas, mas somente uma está localizada em determinado espaço geográfico. É única, sob esse ponto de vista.
Por sua vez, mútuo refere-se ao empréstimo de coisas fungíveis. Dinheiro, exemplificativamente. Substitui-se qualquer de suas manifestações por outra: cédulas por cédulas, créditos em conta bancária por créditos em conta bancária, moedas por moedas.
O mútuo transfere a propriedade do bem. Quem empresta R$ 1 mil transfere o domínio desse valor ao mutuário. Daí resulta que o novo proprietário pode utilizar o bem como desejar, sem a necessidade de pedir autorização ou de prestar contas ao mutuante. Sua única obrigação consiste no retorno de bem equivalente no prazo e forma determinados. Equivalente é o bem do mesmo gênero, qualidade e quantidade.
Importa também saber que essa transferência de propriedade implica em transmissão dos riscos sobre a coisa. Num clássico brocardo latino, a coisa perece para o dono ("res perit domino"). A perda da coisa não exime o mutuário da obrigação de restituir seu equivalente na forma contratada.
Quanto ao prazo, a definição decorre do ajuste entre as partes. Todavia, ausente previsão expressa no contrato, aplicam-se disposições legais. No caso de produtos agrícolas, o mútuo terá por prazo a próxima colheita. Se for de dinheiro, considera-se o termo de 30 dias. Para as demais coisas, o prazo declarado pelo mutuante.
MÚTUO FENERATÍCIO
Feneratício é o mútuo de dinheiro com acordo de pagamento de juros. Esse tipo de negócio tem uso milenar. Na Roma Antiga, origem da maior parte dos institutos jurídicos adotados no Brasil, havia ampla utilização. Todavia, sua implementação demandava dois atos. O mútuo e uma estipulação referente aos juros ("stipulatio usurarum").
Em razão do amplo uso, em vários momentos houve limitações sobre juros. Conta-se que na Lei das XII Tábuas existira uma taxa máxima de 1/12 do capital (8,33%). Não se sabe se mensal ou anual. Valores e autorizações mudaram muito ao longo dos anos. Em 342 a.C., por exemplo, a Lex Genucia (ou Lex Genucia de feneratione) proibiu a cobrança de juros. Teve curta duração. Não se sabe se foi realmente aplicada. No final da república, a taxa legal máxima era 12% ao ano. Mais tarde, Justiniano, fixou-a em 6%.
No Brasil, o Código Civil de 1916 determinava que, ausente ajuste, a taxa de juros seria de 6% ao ano. O Decreto 22.626/33 tornou crime cobrar juros superiores ao dobro da taxa legal. O atual código tem disposição expressa se destinado o "mútuo a fins econômicos". Nesse caso, limita-se à taxa fixada para mora no pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. O mesmo dispositivo permite capitalização anual.
Capitalizar significa incorporar o montante advindo dos juros ao capital principal. Com isso, no ciclo seguinte, os novos juros incidirão sobre o total. Ou, em outras palavras, haverá cobrança de "juros sobre juros". Denomina-se anatocismo o fenômeno. A origem grega do substantivo deixa claro não se tratar de novidade. Os romanos falavam em juros de juros ("usurae usurarum").
Paralelamente, de acordo com entendimento dos tribunais superiores, correção monetária consiste em mera forma de manutenção do poder de compra da moeda. Não se discute a possibilidade de sua incidência. Cabe. Apenas se deve utilizar índice geral ou que possua alguma relação com o negócio. Usualmente, aplica-se o IPCA.
Saliente-se que essas restrições não se aplicam a integrantes do sistema financeiro nacional. Em redação original, a Constituição Federal continha, no art. 192, § 3º, a seguinte redação: "as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar".
O objetivo dos legisladores parece ter sigo afastar o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que entendia não se aplicarem ao sistema financeiro nacional as disposições limitantes do Decreto 22.626/33 (conforme a Súmula 596 do tribunal, editada em 1977).
Só que o dispositivo constitucional nunca foi aplicado. O STF decidiu que era necessária nova lei para limitar os juros. Isso apesar da clareza do texto constitucional, que previa lei apenas para o estabelecimento de crime e pena. Essa ideia tornou-se objeto da Súmula Vinculante 7: "A norma do § 3º do art. 192 da Constituição, revogada pela EC 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicação condicionada à edição de lei complementar". Saliente-se que há diversos exemplos de casos em que o mesmo tribunal entendeu que textos constitucionais menos claros deveriam ser aplicados sem necessidade de lei.
Enfim, integrantes do sistema financeiro nacional podem cobrar juros acima do permitido às demais pessoas. E capitalizá-los mensalmente (art. 5º, Medida Provisória 2.170/2001). Esse arranjo foi consolido entre os anos de 2001 e 2003, durante a gestão de presidentes da república de partidos políticos diversos.
Por último, duas curiosidades.
No mesmo dia da edição da medida provisória citada acima, também nascia a Medida Provisória 2.172/2001. Tudo para impedir que outras pessoas praticassem as taxas de juros e capitalização liberadas para as instituições financeiras. Assim, garantiu-se uma espécie de reserva no mercado de juros.
Em 2003, havia novos ares políticos. Foi quando ocorreu a edição da Emenda Constitucional 42/2003. Ela sepultou a ignorada redação da Constituição Federal. Encerrou-se a discussão.
Todos os bichos são iguais, mas alguns bichos são mais iguais que outros.
PARA EVITAR UM CRIME
Nas operações de mútuo feneratício, duas condutas comuns caracterizam crimes: cobrar juros superiores ao legalmente permitido e captar dinheiro para realizar empréstimos a terceiros.
Juros superiores ao permitido atrai o disposto no art. 4º, "a", Lei 1.521/51. Consiste em crime contra a economia popular. Por ter como pena máxima a detenção de até dois anos, o processo penal tramita em juizado especial. Cabem transação penal e suspensão condicional do processo.
Por outro lado, ao captar recursos de uns para emprestar a outros, atrai-se a incidência de dispositivos da Lei 7.492/86. Trata-se de crime julgado pela Justiça Federal. A figura típica adotada costuma ser a do art. 7º, IV, da lei. Com pena máxima de reclusão de oito anos, mais multa. A natureza da pena permite a qualquer leigo entender a maior reprovabilidade do comportamento.
CONCLUSÃO
Resumindo a questão: observadas a taxa máxima de juros, capitalização anual e índice de correção monetária, qualquer pessoa pode emprestar recursos próprios, não captados de terceiros, legalmente.