Como ocorre o crime de desobediência
Caso curioso envolvendo desobediência: pessoa roubou um carro. No dia seguinte, desobedeceu a ordem de policial militar para parar o carro. Seria o caso de condenação por roubo e por desobediência?
Essa situação foi analisada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Decidiram os ministros cumular as condenações. Além disso, o entendimento foi exarado em sede de recurso repetitivo, isto é, trata-se de tese a ser aplicada a todas as ações judiciais com as mesmas premissas (art. 927, III, CPC).
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
Desobedecer a ordem legal, emitida por funcionário público, pode caracterizar crime.
Não há dúvida sobre o significado do verbo desobedecer. Trata-se de ação ou omissão em desacordo com o determinado. Pressupõe a existência de uma ordem de autoridade competente. Se for uma solicitação, a conduta é atípica.
Deve a ordem ser formal e materialmente legal. Esse ponto se avalia por exclusão: legal é o ato emanado de autoridade competente, que não seja manifestamente ilegal. Também, a ordem precisa ser transmitida diretamente ao destinatário. Sua comunicação a terceiros não atende as exigências legais.
Além disso, há requisito criado pela jurisprudência em diversas situações: a subsidiariedade. Somente se fala em desobediência se ausente outra sanção. Ou se texto de lei diversa mencionar expressamente a possibilidade de também haver desobediência. Essa orientação pode ser vista, por exemplo, na clássica obra de Nelson Hungria. Mas o autor não explica os fundamentos de sua conclusão.
Diz-se criada pela jurisprudência a condição de aplicação porque o texto do artigo 330 do Código Penal versa somente: "desobedecer a ordem legal de funcionário público". Logo, adotando-se como parâmetro a legalidade, perfeitamente possível a punição sem questionamentos sobre subsidiariedade.
Todavia, como dito, em diversas situações a jurisprudência enxerta esse requisito. Um dos casos mais comuns é justamente o não atendimento a ordem de parada por agente de trânsito. Em um dos enunciados jurisprudenciais do STJ lê-se: "a desobediência a ordem de parada dada pela autoridade de trânsito ou por seus agentes, ou por policiais ou outros agentes públicos no exercício de atividades relacionadas ao trânsito, não constitui crime de desobediência, pois há previsão de sanção administrativa específica no art. 195 do CTB, o qual não estabelece a possibilidade de cumulação de punição penal".
Por outro lado, no caso específico de agentes de segurança, atuando em policiamento criminal, o mesmo STJ entendeu caracterizado o crime de desobediência.
Assim, há duas situações: (a) desobediência a ordem de parada em atividades de trânsito é mera infração administrativa; (b) desobediência em contexto de policiamento ostensivo para prevenção e repressão de crimes caracteriza crime.
Importante salientar que houve recurso ao Supremo Tribunal Federal. Portanto, a situação pode ser modificada nos próximos meses.
CASO CURIOSO: PLANO COLLOR I
O Plano Collor, posto em prática em 16 de março de 1990, por meio de medida provisória, previa o sequestro de depósitos em bancos de quantias superiores a determinados valores (variavam conforme o tipo de aplicação financeira).
Diversas ações judiciais foram propostas contra bancos, Banco Central e autoridades pleiteando a devolução imediata dos valores.
Em alguns poucos casos, houve deferimento das medidas. Em pequena parcela deles, juízes determinaram intimação para cumprimento sob as penas do art. 330, CP (crime de desobediência).
Os intimados para cumprimento impetravam habeas corpus preventivos pleiteando salvo-conduto para descumprir as ordens.
Pelo que se sabe, os salvo-condutos foram em sua maioria expedidos. As bases variavam de questões processuais à impossibilidade prática da devolução dos valores. Em resumo, o entendimento era de que as pessoas apontadas não poderiam ser obrigadas ao impossível (os termos jurídicos eram outros).
A ementa de um caso analisado pelo STJ foi a seguinte:
Penal. "Habeas Corpus". Cruzados Novos. Liberação. Competência para autorizá-la. Art. 9 da Lei 8.024, de 12/04/90.
Tendo o art. 9, da Lei 8.024, de 12.04.90, conferido ao Banco Central a condição de guardião dos Cruzados Novos bloqueados dos titulares de contas bancárias, não se pode responsabilizar os demais estabelecimentos, através de seus agentes, pela falta de liberação de qualquer quantia das importâncias retidas, porquanto, "ex vi legis", tal procedimento somente pode ocorrer mediante expressa autorização do banco central. "habeas corpus" deferido.
(STJ HC n. 605/SP, relator Ministro William Patterson, Sexta Turma, julgado em 25/3/1991)
Perceba-se que o julgamento ocorreu mais de um ano após o bloqueio dos valores. Naquele momento, provavelmente não havia mais qualquer relevância da questão da posse do dinheiro (a penal, seguia importante). O retorno dos valores aos seus proprietários, com correção monetária ("BTN Fiscal") e juros de 6% ao ano, havia sido parcelado em 12 vezes (com períodos iniciais variados) pela mesma medida provisória por meio da qual instituído o sequestro ("confisco").
DESOBEDIÊNCIA EM LEIS ESPECIAIS
Há diversas previsões de crimes semelhantes ao do art. 330, CP, em outros dispositivos legais. Para saber qual aplicar, deve-se considerar a desobediência como regra afastável por conduta especial. Alguns exemplos:
(a) art. 205, Código Penal
Art. 205 - Exercer atividade, de que está impedido por decisão administrativa [...];
(b) art. 359, Código Penal
Art. 359 - Exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial [...];
(c) art. 347, Lei 4.737/65 (Código Eleitoral)
Art. 347. Recusar alguém cumprimento ou obediência a diligências, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou opor embaraços à sua execução [...];
(d) art. 10, Lei 7.347/85
Art. 10. Constitui crime, punido com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, mais multa de 10 (dez) a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTN, a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil, quando requisitados pelo Ministério Público. [...];
(e) art. 8º, V, Lei 7.853/89
Art. 8º Constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa:
V - deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, a execução de ordem judicial expedida na ação civil a que alude esta Lei [...];
(f) art. 1º, § único, Lei 8.137/90
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação;
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V [...];
(g) art. 101, Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso)
Art. 101. Deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, a execução de ordem judicial expedida nas ações em que for parte ou interveniente o idoso [...];
(h) art. 24-A, Lei 11.340/06 (Maria da Pena)
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei [...]
§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis [...].
CONCLUSÃO
A caracterização do crime de desobediência depende da ordem legal de funcionário público e da ausência de previsão de outra sanção (administrativa, civil ou penal) ou de previsão de cumulação de penas.
A aparente exceção, recentemente estabelecida em sede de recurso repetitivo pelo STJ, é a desobediência de ordem de parada exarada em situação de policiamento ostensivo para prevenção e repressão de crimes.