Decisão em inquérito gera questionamentos sobre o sistema acusatório
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu ontem que o Inquérito 4.878 (Inq 4878) deve prosseguir. Isso apesar de o Procurador-Geral da República haver peticionado pedindo o arquivamento do procedimento. Essa investigação faz parte de um conjunto envolvendo manifestações contrárias ao STF, seus ministros e ao sistema eleitoral brasileiro.
Desde logo alerta-se que as linhas a seguir são ponderações a respeito de temas processuais penais. Não possuem viés político partidário. Nem qualquer intenção além de tentar avaliar aspectos jurídicos, presentes e futuros.
Os entendimentos manifestados em algumas decisões referentes a esse inquérito, assim como nos demais, têm potencial de modificar o procedimento penal em todo o país. Afinal, razoável imaginar que os juízes dos demais tribunais adotem os fundamentos expressos em decisões prolatadas pela corte de justiça superior.
Na decisão do dia 5 de agosto de 2022, o ministro Alexandre de Moraes não conheceu o pedido do Ministério Público Federal. Isso em razão da ocorrência de preclusão temporal e lógica. Nas razões de decidir, escreveu:
“A inusitada alteração de posicionamento da Procuradoria Geral da República, manifestada somente em 1º de agosto de 2022, não afasta a PRECLUSÃO TEMPORAL já ocorrida, pois não tem o condão de restituir o prazo processual para interposição dos recursos no prazo legal.
Não bastasse a ocorrência da PRECLUSÃO TEMPORAL, comportamentos processuais contraditórios são inadmissíveis e se sujeitam à PRECLUSÃO LÓGICA, dada a evidente incompatibilidade entre os atos em exame, consubstanciados na anterior aceitação pela Procuradoria Geral da República com as decisões proferidas – tendo manifestado por cinco vezes sua ciência – e sua posterior irresignação extemporânea; […]”.
A questão de fundo, nessa decisão, é a possibilidade de haver investigação em situação de expresso pedido de arquivamento pelo Ministério Público Federal. Isso considerando ser o órgão o titular da ação penal pública. Em outras, palavras, se o órgão responsável pela acusação manifesta-se contrariamente à investigação, pode ela prosseguir? Mesmo quando aponta a inexistência de crime? E, prosseguindo, quem será o responsável?
Lembre-se que a constituição atribui expressamente o controle da atividade policial ao Ministério Público (art. 129, VII). Da mesma forma, cabe ao órgão “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei” (art. 129, I). Além disso, os tribunais entendem não caber ação penal privada subsidiária da pública quando o ministério público pede arquivamento do inquérito (STF ARE 859251, tema 811).
O entendimento da questão pressupõe alguns conhecimentos sobre os sistemas processuais penais…
SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
Estudiosos do processo penal costumam apresentar três conjuntos nos quais procuram classificar os sistemas processuais: inquisitivo, acusatório e misto.
O sistema inquisitivo tem por diferencial a concentração do poder no juiz. Ele investiga, acusa, julga. Não há contraditório e ampla defesa. E, como aponta Nestor Távora, “o procedimento é escrito e sigiloso, com o início da persecução, produção da prova e prolação de decisão pelo magistrado”. Acrescenta Aury Lopes Júnior que “não existe imparcialidade, pois uma mesma pessoa (juiz-ator) busca a prova (iniciativa e gestão) e decide a partir da prova que ela mesma produziu”. Não por acaso, esse sistema tornou-se famoso como o adotado pela “Santa Inquisição Romana e Universal“.
Esse sistema foi o adotado pelo Código de Processo Penal Brasileiro, de 1941, inspirado no código italiano de 1930 (denominado “Código Rocco” em referência a Alfredo Rocco, ministro da justiça durante o governo de Benito Mussolini).
O sistema acusatório, por outro lado, predomina a separação entre as funções de acusar e de julgar. O juiz deve ser um terceiro imparcial, “alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo”, conforme Aury Lopes Júnior. Além disso, o procedimento deve ser predominantemente oral e público.
Além disso, o mesmo autor sustenta que a “posição do julgador é fundada no ne procedat iudex ex officio, cabendo às partes, portanto, a iniciativa não apenas inicial, mas ao longo de toda a produção da prova. É absolutamente incompatível com o sistema acusatório […] a prática de atos de caráter probatório ou persecutório por parte do juiz, ou, como existia no sistema brasileiro até a reforma de 2019, em que se permitia que o juiz decretasse a prisão preventiva de ofício […]”.
Parte dos doutrinadores afirma ser esse sistema o adotado pela Constituição Federal de 1988.
Por último, o sistema misto, como o próprio substantivo deixa claro, possui características dos dois anteriores. Teria surgido a partir do Código Napoleônico de 1810, com a divisão do processo em fase pré-processual (inquisitória) e processual (acusatória).
Há quem sustente, especialmente antes da reforma legislativa de 2019, ser esse o sistema processual penal brasileiro.
O CASO DO INQUÉRITO 4878
As ponderações acima permitem imaginar que a consolidação do entendimento expresso na decisão do ministro alterará mais uma vez a orientação predominante no processo penal brasileiro.
Perceba-se que o próprio inquérito nasceu de forma incomum. Segundo informado na petição do Procurador-Geral de República, de 19 de fevereiro de 2022:
“Este inquérito foi instaurado a partir de decisão proferida por Vossa Excelência, em 12 de agosto de 2021, no Inquérito 4.781/DF. Nela foi acolhida notícia-crime encaminhada pelo Tribunal Superior Eleitoral a fim de apurar, inicialmente, a prática da infração penal prevista no art. 153, § 1º-A, do Código Penal, combinado com a figura do § 2º do mesmo dispositivo legal.
[…]
Na ordem judicial em que impôs a instauração do Inquérito 4.878/DF (fls. 85-92), Vossa Excelência determinou o envio dos autos à Procuradoria-Geral da República para manifestação, além das seguintes providências:
(a) o afastamento do Delegado de Polícia Federal Victor Neves Feitosa Campo da Presidência do IPL no 1361/2018-4/DF, com requisição ao Diretor-Geral da Polícia Federal de instauração de procedimento disciplinar para apurar os fatos (divulgação de segredo); que, igualmente, deverá providenciar a substituição da autoridade policial;
(b) oitiva de dois dos envolvidos na divulgação dos dados sigilosos, no prazo máximo de 10 (dez) dias:
(b.1) Victor Neves Feitosa Campos, Delegado de Polícia Federal;
(b.2) Felipe Barros, Deputado Federal;
(c) a expedição de ofício para que as empresas Facebook, Twitter, Telegram, Linode (Cloudfare) e Bitly procedam à imediata exclusão/retirada das publicações divulgadas nos links a seguir, preservando o seu conteúdo, com disponibilização ao Supremo Tribunal Federal.”
Como a parte inicial do inquérito ainda está em segredo de justiça, não há como verificar o teor da citada decisão. Mas o Ministério Público dificilmente erraria seu teor. Então, para fins de raciocínio, considere-se como correto o texto.
Está-se diante do caso em que um tribunal envia a outro notícia sobre possível crime cometido por autoridade no exercício da função. O procedimento usual seria o juiz encaminhar o material ao Ministério Público, a quem competiria requerer o que entendesse correto ao tribunal que entendesse competente.
Todavia, conforme o narrado, o próprio juiz determinou a instauração do inquérito. E prolatou decisões cautelares e instrutórias de ofício. Assim, perceba-se que o entendimento adotado adequa-se à ideia de procedimento inquisitivo.
Além disso, na citada petição, o Procurador Geral da República apontou a inexistência do alegado crime (atipicidade). Isso com base no princípio da publicidade. Os investigados, quando informaram a coletividade sobre o conteúdo do material sigiloso, teriam somente dado aos cidadãos conhecimento a respeito de fatos de interesse público.
CONCLUSÃO
Sem julgar as questões de mérito envolvidas, a partir das informações disponíveis ao público, parece haver um retorno a práticas processuais penais antigas.
Adjetivar a situação como boa ou ruim cabe a cada um.
Todavia, a maioria das pessoas pode acabar envolvida em processos penais. E os fatos aqui narrados permitem imaginar espaço mais reduzido para a defesa.