Diferença entre contrato e instrumento do contrato
Contrato é um acordo de vontades para criar, modificar ou extinguir relações jurídicas. Eis uma descrição simples. Grande parte das pessoas, contudo, confunde contrato com o instrumento do contrato. E essa percepção equivocada causa diversos problemas jurídicos.
O que se deve entender por “instrumento do contrato”? É o meio pelo qual os termos contratados são registrados. A tradição dos últimos séculos sugere a escrita em alguma superfície, como o papel. Mas se pode pensar, por exemplo, em termos expressos em voz gravados num arquivo digital.
O instrumento do contrato possui algumas finalidades. Mas sua capacidade de provar os exatos termos ajustados parece ser a mais importante. Na maioria dos casos, não há obrigatoriedade de confeccioná-lo. Todavia, quando a lei o aponta como requisito necessário, sua ausência pode invalidar ou qualificar como inexistente o contrato. Talvez a ilustração mais conhecida para o caso seja a da peça Fausto, de Goethe. Nela, o instrumento do contrato entre Fausto e Mefistófeles, em papel, é assinado com uma gota de sangue.
Para entender as diferenças, aprofunde-se um pouco…
O CONTRATO NO DIREITO
A viga mestra das obrigações jurídicas consta no artigo 5º, II, da Constituição Federal. Ali se expressou o princípio da legalidade: ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. A lei obriga. Pode-se acrescentar que a vontade individual, nos termos da legislação, também.
O contrato não possui definição no Código Civil (CC/02). Assim como não possui o negócio jurídico, grupo ao qual pertence o contrato (em ordem, do conjunto maior para o menor: fatos jurídicos, atos jurídicos lícitos, negócios jurídicos). Doutrina e jurisprudência oferecem definições; algumas vezes meramente casuísticas e sem possibilidade de extrapolação para outras situações.
Mesmo em leis com muitas definições, a conceituação do contrato foi evitada. Por exemplo, as leis de licitações e de contratos administrativos, prolíficas em delimitar institutos, não abordam o significado de “contrato” (Decreto-lei 2.300/86; Lei 8.666/93; e Lei 14.133/21, por exemplo).
De qualquer modo, na maioria dos casos, essa ausência de definição não causa problemas. Isso porque as características principais dos contratos, expressas em lei, permitem entender, classificar e perceber as consequências dos ajustes. Em situações de contratos típicos, aqueles expressos em lei, não há espaço para dúvidas. Por sua vez, quando se abordam os negócios atípicos, geralmente se percebe quais institutos utilizar. Lembre-se que a lei permite a celebração de contratos atípicos (art. 425, CC/02).
Apenas a título de curiosidade, um dos poucos ramos do Direito — senão o único — que apresenta algo próximo a uma definição de contrato é o Direito Internacional Público. O artigo 2º, I, “a”, da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados define: “tratado significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica“. Pode-se considerar o tratado como um contrato. Mas se deve ter cuidado porque, aqui, há previsão expressa sobre a obrigatoriedade da forma escrita. Não é a regra no Direito Privado Brasileiro.
ASPECTOS GERAIS SOBRE CONTRATOS
Integrante da categoria dos negócios jurídicos, os aspectos gerais fundamentais em um contrato são: (a) manifestação de vontade; (b) agente capaz; (c) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; (d) forma prescrita ou não defesa em lei. Salvo o primeiro, considerado implícito, os demais fundamentos constam no art. 104, CC/02. Equivalem, com acréscimos, ao que se lia no art. 82 do Código Civil de 1916 (CC/16).
Explica-se brevemente cada um dos termos.
Por manifestação de vontade entende-se aquela não forçada. O contrato é ato de liberdade; sua imposição implica em vícios. Assim, tanto oferta quanto aceitação devem ser livres.
Capaz é a pessoa maior de 18 anos, que não sofra restrições jurídicas em razão de condição pessoal (art. 3º, CC/02). Apesar da literalidade do art. 104, CC/02, deve-se entender que o incapaz pode celebrar contratos, desde que representado por alguém capaz (art. 116; e art. 974, § 3º, III, por exemplo). Semelhantemente, os relativamente incapazes, arrolados no art. 4º, CC/02, devem ser assistidos por pessoa capaz na celebração de alguns negócios. Lembre-se que deficientes são pessoas capazes como regra (Lei 13.146/15).
Afere-se a licitude do objeto por meio da ausência de vedações legais. Vale a máxima de que se permite tudo aquilo que não se proíbe. Já a possibilidade do negócio se percebe empiricamente. Compra e venda de espaços na lua, neste momento, seria exemplo de negócio impossível. Determinado é o objeto certo, delimitado, inteligível; determinável, aquele possível de determinação no presente ou no momento de produção dos efeitos do acordo.
Por último, como anteriormente apontado, as formas do negócio são livres como regra. Mas, se houver prescrição legal específica, seu descumprimento invalida o acordo (art. 107, CC/02). Por exemplo, compra e venda envolvendo bem imóvel com valor superior a 30 salários mínimos somente pode ocorrer por meio de escritura pública (art. 108, CC/02). Desrespeitada essa determinação, inválido ou não existente o contrato (há discussão sobre os temos, irrelevante aqui).
A partir do exposto, perceba-se que a regra não impõe a existência de instrumento para a constituição do contrato. A exceção exemplificativamente apontada foi a compra e venda de imóvel de considerável valor.
Sobre os contratos de forma vinculada, necessário pontuar uma distinção. Existem os formais e os solenes. Não há unanimidade sobre essa divisão. Mas quem a defende sustenta que os formais possuem alguma formalidade necessária, como o meio escrito, por exemplo. Por outro lado, os solenes são celebrados perante ou através de algum tipo de pessoa investida em função pública, como no caso da compra e venda de imóveis, realizada em tabelionato de notas.
Por último neste ponto, vale lembrar que mesmo contratos de Direito Público podem ser verbais em algumas hipóteses. Pequenas compras ou prestações de serviços de pronto pagamento, com valores inferiores a R$ 10 mil, podem ser verbais (art. 95, § 2º, Lei 14.133/21). Mas haverá algum instrumento posterior formalizando pagamento e recebimento.
PROVA DOS TERMOS CONTRATUAIS
A prova dos termos contratados parece ser o objetivo dos instrumentos contratuais, como dito. Questões probatórias têm diversas particularidades. Mas, como regra civil, há cinco grandes meios de prova: confissão, documentos, testemunhas, presunções e perícias.
Os documentos, que não se resumem a papéis com palavras escritas, são alguns dos mais seguros meios de prova. Isso porque permitem reprodução com maior exatidão das situações existentes quando da sua constituição. E podem ser periciados em casos de dúvidas. Provavelmente por causa dessas características é que o imaginário popular tende a confundir instrumento do contrato com o contrato em si.
EXEMPLOS DE CONTRATOS VERBAIS
Para situar o cotidiano do leitor com o tema, veja-se alguns exemplos de contratos verbais em entendimentos de tribunais:
(a) Distribuição: “[…] Contrato de distribuição. Produtos alimentícios para animais. Rescisão por iniciativa da fornecedora, com aviso prévio. […] Contrato verbal de distribuição, com exclusividade. […]” (TJSP 1001771-79.2016.8.26.0084, julgamento em 26/07/2022);
(b) Mútuo: “[…] Ação de cobrança. Contrato verbal de empréstimo de quantia certa. Sentença de parcial procedência. […] Incontroverso o depósito em conta bancária de titularidade da ré. Ausência de comprovação de devolução do dinheiro. [..]” (TJSP 1020386-94.2018.8.26.0554, julgamento em 24/07/2022);
(c) Hospedagem: “[…] Prestação de serviço de hospedagem de site. A existência de contrato verbal não inviabiliza a cobrança por serviço prestado, no entanto, depende de prova inequívoca dos termos da contratação e do valor do pagamento ajustado. […]” (TJRS 50022463120158210022, julgado em 14/07/2022);
(d) Arrendamento: “[…] Arrendamento de local para abrir um restaurante. Retomada compulsória do imóvel. Adimplência parcial de mensalidades. Não comprovação do contrato verbal firmado ou dos danos morais experimentados. […] Inicialmente, cabe ressaltar que inexistem provas nos autos capazes de sustentar a veracidade do suposto pacto verbal entre as partes. […]” (TJRS 71010453777, julgado em 30/06/2022);
(e) Comercialização de móveis planejados: “[…] Contrato verbal. Rescisão abrupta e imotivada. Conduta desleal, abusiva e contrária à boa-fé. Dever de indenizar reconhecido. […]” (TJRS 50025892920168210010, julgado em 30/06/2022).
Esses são apenas alguns casos analisados pelo Judiciário. No dia a dia, a contratação verbal é a regra na vida as pessoas.
CONCLUSÃO
Por essas razões, não se deve confundir contrato com instrumento de contrato no Direito Brasileiro. O primeiro é o negócio em si. O segundo pode ser requisito de validade (em poucos casos) ou simples meio de prova do primeiro (maioria das vezes).