Função social da propriedade rural e ADI 3865
Alguns esclarecimentos necessários para entender a decisão do STF
Função social da propriedade rural é um conceito constitucional no Brasil. Em primeiro lugar, decorre do disposto no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal (CRFB). Seu texto diz: "a propriedade atenderá a sua função social". Entendimentos jurídicos nas últimas décadas têm considerado que, descumprida a "função social", não se tem propriedade. Há controvérsia sobre isso. Na prática, no caso da propriedade rural, os elementos do conceito devem ser construídos considerando-se o texto do art. 186, CRFB.
A partir dele, entende-se que a propriedade rural que cumpre sua função social é aquela: (a) aproveitada de forma racional e adequada; (b) em que se utiliza adequadamente os recursos naturais disponíveis e se preserva o meio ambiente; (c) na qual são observadas as disposições sobre relações de trabalho; e (d) cuja exploração favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Leis, atos infralegais e decisões judiciais explicitam cada um desses quatro requisitos. Por exemplo, pode-se analisar o aproveitamento da propriedade a partir do “grau de eficiência na exploração”, figura da Lei 8.629/93, aplicável à desapropriação para reforma agrária. Perceba-se que a lei menciona “índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo". Logo, em última análise, órgão de ministério define parte dos critérios para desapropriação (ao invés da própria lei).
Ao lado da função social da propriedade, tem-se a ideia de propriedade produtiva. Conforme outro dispositivo constitucional, ela não pode ser desapropriada (art. 185, II, CRFB). Nada no texto condiciona essa vedação ao cumprimento da função social.
Pode-se, então, imaginar dois caminhos: a propriedade produtiva não pode ser desapropriada; a propriedade que cumpre sua função social poderia, mas sob diversas condições. Caberia desapropriação da propriedade produtiva que não cumpra sua função social? Eis uma questão importante. Pelo que se pôde perceber até agora (sem acesso aos votos dos ministros), parece que sim.
Na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 3865, a discussão apresentada ao Judiciária envolvia assuntos relacionados à produtividade. Havia questionamento sobre parte do art. 6º da Lei 8.629/93. O dispositivo diz:
Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
O pedido foi para declarar inconstitucionais as expressões: "explorada econômica e racionalmente", "simultaneamente" e "utilização da terra e" (diferenciados na citação acima).
Também foi questionado o art. 9º, § 1º, da lei. Sua redação:
Art. 9º […] § 1º Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§ 1º a 7º do art. 6º desta lei.
Por sua vez, o art. 6º, § 1º tem a seguinte redação:
Art. 6º, § 1º O grau de utilização da terra, para efeito do caput deste artigo, deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel.
A entidade autora da ação pedia a declaração de inconstitucionalidade da expressão “e de eficiência na exploração" (diferenciada na citação acima).
Fundava o pedido da ação na confusão criada na lei entre os conceitos de "grau de utilização da terra" e "eficiência em sua exploração". Grau utilização da terra consiste em relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área total aproveitável do imóvel. Por outro lado, ao grau de eficiência na exploração chega-se a partir de análise entre o que o imóvel produz em determinado período. Ao tratar os conceitos como iguais, na prática, facilitar-se-ia a desapropriação de propriedade produtiva.
Todavia, os ministros discordaram dessa abordagem. Julgaram improcedente a ação (ADI 3865) e, por conseguinte, constitucionais os dispositivos. Ainda não se tem acesso aos votos para entender suas razões. Contudo, em matéria divulgada no site do STF, há indicativo de que houve análise englobando os artigos em conjunto: “Fachin observou que o artigo 184 da Constituição Federal autoriza a desapropriação por interesse social do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. Por sua vez, o artigo 185 veda a desapropriação de propriedades produtivas e remete à lei a fixação de normas para o cumprimento dos requisitos relativos à função social. Ou seja, a própria Constituição exige o cumprimento da função social como condição para que a propriedade produtiva não possa ser desapropriada e delega à legislação infraconstitucional a definição do sentido e do alcance do conceito de produtividade, para que esse critério seja considerado”.
Conceito de desapropriação
Desapropriação é procedimento de direito público pelo qual o poder público transfere para si a propriedade por razões de necessidade, utilidade pública ou interesse social. Normalmente, mediante indenização. Trata-se de forma de aquisição originária de propriedade; é intervenção supressiva, pois o antigo proprietário perde o bem (diferentemente, por exemplo, daquela intervenção que proíbe o plantio de determinada cultura em determino tempo). Note-se que a desapropriação é exceção. Somente cabe nas hipóteses legais.
Existem diversas espécies de desapropriação. Sem entrar nas discussões sobre gênero e espécies, de modo geral, tem-se:
(a) desapropriação comum ou ordinária (art. 5º, XXIV, CRFB), cujos requisitos são necessidade, utilidade pública ou interesse social; regulada pelo Decreto-lei 3.365/41 (necessidade, utilidade pública) e pela Lei 4.132/62 (interesse social);
(b) desapropriação urbanística sancionatória ou para fins de política urbana, que decorre do fato de o proprietário não ter dado função social à propriedade urbana, conforme previsto no art. 8º, Lei 10.257/01;
(c) desapropriação rural ou para fins de reforma agrária, que resultado do descumprimento da função social da propriedade e é regulada pela Lei 4.504/64, Lei 8.629/93 e Lei Complementar 76/93;
(d) desapropriação confiscatória ou confisco, cuja natureza é bastante discutida, havendo muitos que não a consideram desapropriação, mas mero confisco.
Desapropriação para fins de reforma agrária
Para a desapropriação para fins de reforma agrária existem dois grandes óbices: (a) o cumprimento da função social da propriedade (art. 184, CRFB); (b) o fato de a propriedade ser produtiva (aqui a discussão na ADI 3865). Pela literal disposição constitucional, nenhuma propriedade rural que cumpra qualquer desses requisitos pode ser desapropriada. Todavia, há discussão sobre deverem ou não serem esses critérios avaliados em conjunto (pelo divulgado pelo STF, o ministros parecem ter considerado que sim). E, até, se a vedação à desapropriação das propriedades em que cumprida a função social é absoluta.
O cumprimento da função social da propriedade foi explicado acima.
Para avaliar se a propriedade rural é produtiva, a lei exige o cumprimento de dois requisitos: (a) grau de utilização da terra igual ou superior a 80% (calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel); (b) grau de eficiência na exploração da terra igual ou superior a 100%.
O grau de eficiência é calculado de forma complexa. Varia conforme o tipo de uso do imóvel. Veja-se:
• produtos vegetais: divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo;
• exploração pecuária: divide-se o número total de unidades animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo.
O grau de eficiência decorre da divisão da soma dos resultados dos parágrafos anteriores pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100.
Descumpridos os requisitos, pode haver desapropriação da propriedade rural. A regulação dos dispositivos constitucionais consta nas leis 4.504/1964 e 8.629/1993. O procedimento, o processo para a desapropriação, está descrito na Lei Complementar 76/1993. Tudo regulado pelo Decreto 578/1992.
Sobre o procedimento de desapropriação para reforma agrária
A desapropriação para reforma agrária somente pode ser realizada pela União (pelo governo federal). A ação judicial tramita na justiça federal. Tem como pressuposto o pagamento de indenização ao proprietário. Esse pagamento ocorre por meio de títulos da dívida agrária (TDA), resgatáveis em até 20 anos. Esses títulos não são de todo inúteis, mas somente empolgam em situações especiais. Por outro lado, benfeitorias necessárias e úteis realizadas no imóvel devem ser pagas em dinheiro (necessárias são aquelas realizadas para a manutenção do bem; úteis as que melhoram seu uso).
E o esbulho (a invasão pelo MST, por exemplo)? O entendimento usual é que ela impede a vistoria da propriedade por dois anos (o que veda a desapropriação no período, na prática). Em regra, os tribunais respeitam essa disposição legal (art. 2º, § 6º, Lei 8.629/93; Súmula 354 do Superior Tribunal de Justiça - STJ).
E as pequenas e médias propriedades rurais? A desapropriação delas remete à mesma discussão sobre a necessidade de cumprimento da função social. Se a função social for necessária mesmo nos casos do art. 185, CRFB, elas podem ser desapropriadas (mesmo caso das produtivas). Se o art. 185, CRFB, puder ser aplicado em sua literalidade, sem avaliar o art. 186, CRFB, não cabe desapropriação. Lembre-se que os conceitos de pequena e média propriedade são previstos em lei.
Decisão na ADI 3865
A ação direta de inconstitucionalidade 3865 tinha como causa de pedir a constitucionalidade de alguns elementos do art. 6º e do § 1º do art. 9º da Lei 8.629/93. Em regra, toda decisão de ação é limitada pelo pedido. Mesmo as ações diretas de inconstitucionalidade somente poderiam avaliar o objeto apresentado (art. 6º e do § 1º do art. 9º). Assim, qualquer disposição ou comentário fora daquele tema não teria qualquer efeito vinculante. Na prática, isso nem sempre acontece.
Seguindo-se entendimentos tradicionais sobre o tema, há possibilidade de novas discussões. Mas isso, em última análise, está sob a vontade do próprio STF.
O que se sabe neste momento, sem a íntegra do acórdão? Que o art. 6º e o art. 9º, § 1º, da Lei 8.629/93 foram julgados constitucionais.