Perigo escondido no encerramento da pessoa jurídica
A lei brasileira facilita a desconstituição de uma pessoa jurídica de pequeno porte. Pelo menos desde a entrada em vigor da Lei Complementar 123/06, o registro, o término legal desses empresários, não está condicionado à comprovação do pagamento de créditos tributários, trabalhistas e previdenciários (art. 9º, Lei Complementar 123/06).
Parece uma grande vantagem. Nem sempre. Quando se avalia a questão como um todo, percebe-se a armadilha. Muitos pequenos empresários, com recursos limitados e em momentos de desespero, acabam induzidos a trilhar esse caminho perigoso.
Aborda-se a seguir alguns aspectos tributários. Mas há vários outros.
Há necessidade de conhecimento mínimo sobre as modalidades de responsabilidade tributária para entender a situação.
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
De uma forma geral, responsável é aquela pessoa com dever jurídico de fazer algo em razão de situação ou comportamento.
Talvez a forma mais simples de perceber a questão seja através da teoria dualista da obrigação, de origem alemã, atualmente bastante difundida no Direito Civil Brasileiro. Nela, diferencia-se débito e responsabilidade. Débito é aquilo que a pessoa deve fazer (ação ou omissão). Responsabilidade a consequência do descumprimento do débito. Responde-se por débito próprio ou alheio, dependendo da situação. Pode haver débito sem responsabilidade; e responsabilidade sem débito.
No campo tributário, usualmente pensa-se em débito e responsabilidade em momentos distintos. Tudo em razão da complexidade. Existem vários dispositivos sobre responsabilidade no Código Tributário Nacional (CTN). E diversas classificações a partir daí. Para dar ideia sobre a dificuldade, vejam-se duas:
(a) Classificação legal da responsabilidade: o CTN divide a responsabilidade em três grupos. Responsabilidade dos sucessores (art. 129 a 133); de terceiros (art. 134 e 135); por infrações (art. 136 a 138). E aborda a solidariedade no capítulo sobre o sujeito passivo (art. 124 e 125).
(b) Classificação doutrinária: grande parte dos autores realiza a divisão em dois grupos. Responsabilidade por substituição e por transferência. No primeiro caso, a responsabilidade constitui-se diretamente contra o substituto tributário. No segundo, passa ao substituto momentos após sua gênese.
Essas classificações são importantes porque facilitam o entendimento de causas de consequências em cada situação.
No caso do encerramento de empresas de pequeno porte, discute-se a aplicação de responsabilidade por substituição. Incidiria o art. 134, VII, CTN; ou art. 135, CTN?
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DE ADMINITRADORES E SÓCIOS
Inicialmente, recorde-se quatro conceitos. Empresa é atividade em si. Empresário, geralmente uma pessoa jurídica, é aquele que exerce a empresa. Sócio é o que possui cotas sociais da pessoa jurídica. Administrador é o que atua na gestão do empresário.
Genericamente, nem administradores nem sócios respondem por inadimplementos tributários. Débito e responsabilidade são da pessoa jurídica (empresário). A responsabilidade somente recai sobre outros em decorrência de disposição legal e de algum estado ou comportamento.
A isso, some-se o tradicional entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) apontando que o mero inadimplemento de tributo não é causa para redirecionamento de execução fiscal.
Nesse contexto, razoável imaginar que o fim de uma pessoa jurídica, registrado conforme determina a lei, em regra não geraria responsabilidade de administradores e sócios. Afinal, a dívida da pessoa jurídica não poderia ser transferida a outros sem a comprovação de algum tipo de ilegalidade.
Mas não tem sido este o entendimento do STJ em muitos casos.
Nas duas turmas que julgam matéria tributária, há decisões responsabilizando sócios por débitos tributários. O raciocínio é bastante curioso: como a dissolução da pessoa jurídica ocorreu conforme a lei, aplica-se o art. 134, VII, CTN. Dessa forma, os sócios respondem pelo débito em razão da impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal do contribuinte.
Estranhamente, esse entendimento torna mais oneroso e arriscado para os sócios o encerramento legal da pessoa jurídica.
Antes dessa disposição legal, muitos administradores simplesmente deixavam a pessoa jurídica sem atividade. Dessa forma, não caberia o redirecionamento dos débitos tributários contra os sócios. Passados os prazos decadencial e prescricional, a questão estaria resolvida. Era possível discutir o papel do administrador, mas deixar de pagar tributo por ausência de patrimônio não é ilícito em si. Então a responsabilização exigia trabalho da fiscalização tributária.
JURISPRUDÊNCIA
Para demonstrar o dito acima, vejam-se dois julgados recentes do Superior Tribunal de Justiça. Somente duas turmas julgam matéria tributária. Apresenta-se parte de ementa de decisões:
(a) Primeira Turma: “[…] Tratando-se de execução fiscal proposta em desfavor de micro ou pequena empresa regularmente extinta, é possível o imediato redirecionamento do feito contra o sócio, com base na responsabilidade prevista no art. 134, VII, do CTN, cabendo-lhe demonstrar a eventual insuficiência do patrimônio recebido por ocasião da liquidação para, em tese, poder se exonerar da responsabilidade pelos débitos exequendos. […]” (AgInt no REsp 1.737.677/MS, julgado em 18/11/2019);
(b) Segunda Turma: “[…] Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que tanto a redação do art. 9º da LC 123/2006 como da LC 147/2014, apresentam interpretação de que no caso de micro e pequenas empresas é possível a responsabilização dos sócios pelo inadimplemento do tributo, com base no art. 134, VII, do CTN, cabendo-lhe demonstrar a insuficiência do patrimônio quando da liquidação para exonerar-se da responsabilidade pelos débitos. […]” (REsp 1.876.549/RS, julgado em 3/5/2022).
Perceba-se aspecto curioso. Nas ementas consta a obrigação de os sócios provarem a inexistência de patrimônio. Isso decorre de entendimento equivocado sobre o processo administrativo de lançamento. Via de regra, os tribunais entendem que se a questão constou no lançamento tributário, ainda que em uma linha e sem qualquer prova, caberá ao contribuinte demonstrar o oposto no Judiciário. Em outros termos: inverte-se o ônus da prova. E isso, muitas vezes, sem sequer analisar se houve discussão — e prova — sobre a questão no processo administrativo.
Retomando a questão, veja-se a redação do dispositivo legal aplicado pelo tribunal:
Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:
[…]
VII – os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas.
No mínimo, existe uma boa razão para não aplicar esse dispositivo: nem toda a pessoa jurídica pode ser considerada como “sociedade de pessoas”.
Recorde-se que “sociedades de pessoas” são aquelas em que a figura do sócio é mais importante do que o capital por ele investido. As características pessoais prevalecem. Por outro lado, nas “sociedades de capital” prevalece a importância dos recursos financeiros e materiais aplicados na sociedade. Na prática, a maioria das sociedades pertencem à espécie “de capital”.
Portanto, a presunção correta consideraria qualquer sociedade como de capital. Somente na presença de prova, pensar-se-ia de outra forma. De qualquer modo, não é o entendimento do tribunal sobre a questão. E esse raciocínio tem grande potencial de prejudicar os sócios.
CONCLUSÃO
Assim, apesar das incoerências apontadas, vê-se que há necessidade de avaliar muito bem a situação antes de decidir encerrar uma empresa de pequeno porte. Isso porque as consequências podem ser bem diferentes daquelas a que muitas pessoas são induzidas a acreditar.
E quem são as microempresas e as empresas de pequeno porte? São “a sociedade empresária, a sociedade simples, a empresa individual de responsabilidade limitada e o empresário a que se refere o art. 966 do Código Civil”, devidamente registrados, com receita bruta igual ou inferior a R$ 360 mil (microempresa); ou igual ou inferior a R$ 4,8 milhões (empresa de pequeno porte).