Solidariedade em relação de consumo e o caso de um pequeno comerciante no Brasil
A responsabilidade solidária prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC) prejudica os pequenos comerciantes em muitos casos. E essa situação agrava-se quando se adiciona justiça gratuita, sistema de juizados especiais e a ampla aceitação de decisões que utilizam termos vagos sem explicar minimamente sua adequação ao caso concreto.
O caso reportado nas linhas seguintes envolve um consumidor, um pequeno comerciante e uma multinacional com filial no Brasil. Em poucas linhas, após mais de um ano, um fone de ouvido usado na água deixou de funcionar. A garantia era de um ano (somatório da legal e da contratual). O consumidor levou a uma assistência técnica, que informou impossível o conserto. Como segundo passo, o consumidor reclamou diretamente ao fabricante, que lhe ofereceu desconto na compra de outra mercadoria. Então, em terceiro lugar, o consumidor recorreu ao Poder Judiciário.
O pequeno comerciante, que vendeu o produto através de sua loja na internet, foi incluído no polo passivo da ação judicial. Até então, nada sabia sobre o ocorrido. A sentença condenou-o solidariamente a indenizar o consumidor.
Alguém que nunca explorou atividade empresarial pode achar isso bastante razoável. Contudo, o desenvolvimento de uma atividade requer um mínimo de controle de riscos. Acabar condenado a indenizar numa situação dessas extrapola o razoavelmente imaginável, principalmente quando se considera que ao pequeno comerciante em momento algum fora dado conhecimento ou a possibilidade de agir antes da ação judicial.
SOLIDARIEDADE
Para entender a solidariedade do ponto de vista legal, deve-se partir de uma noção mínima de “obrigação”. Os dois conceitos constam no Código Civil (CC/02). Em termos simples, obrigação consiste em relação jurídica existente entre duas pessoas prevendo prestações mútuas. Numa compra e venda, por exemplo, o débito fundamental do vendedor é transferir o domínio do bem; o do comprador, pagar o preço. Perceba-se os polos distintos na obrigação (comprador / vendedor, no caso).
A solidariedade, por sua vez, ocorre em situações nas quais mais de uma pessoa tem direito ou obrigação em relação ao total da prestação (art. 264, CC/02). Além disso, deve haver expressa previsão legal ou contratual. Solidariedade não se presume (art. 265, CC/02).
Provém a solidariedade do objetivo de resguardar a outra parte da relação. No caso de solidariedade passiva (dois devedores), o credor pode exigir toda a prestação de qualquer deles (art. 275, CC/02). Qual a vantagem? Várias. Pense-se no caso de duas pessoas adquirirem um bem com pagamento parcelado. Uma sabidamente possui patrimônio. A outra, não. Havendo inadimplemento, pode o credor exigir toda a dívida de quem pode pagar. Receberá mais rapidamente e com menor esforço. Em regra, no caso de recurso ao Judiciário, poderá acionar apenas aquele que tem dinheiro, abreviando o trâmite processual.
SOLIDARIEDADE NO CDC
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), adota a ideia de solidariedade entre fornecedores como regra.
A lei qualifica como “fornecedor” todo aquele que desenvolve atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços (art. 3º, CDC). Note-se que tanto o fabricante quanto o comerciante são fornecedores em relação a alguém que adquire o bem para uso próprio.
O caso em análise — produto que parou de funcionar — pertence ao grupo dos “vícios de produto”. Para essa situação, o art. 18, CDC, determina genericamente a responsabilidade solidária dos “fornecedores”. Dessa forma, o consumidor poderia exigir o que entende cabível tanto do fabricante quanto do comerciante.
O objetivo que se imagina para essa abordagem seria a maior proteção ao consumidor. Poderia optar; exigir a prestação de quem mais apto ao pagamento. Contudo, nada lhe impede de demandar dos dois (comerciante e fabricante). Uma vez condenados, a obrigação se torna integralmente exigível de qualquer um.
SOLIDARIEDADE NO CASO CONCRETO
No caso motivador deste artigo, o consumidor ajuizou ação indenizatória contra comerciante e fabricante. Pediu a condenação de ambos por danos materiais (R$ 400,00; valor arredondado) e por danos morais (R$ 10 mil).
OS FATOS
— sugere-se àqueles sem formação jurídica pular este tópico para economizar tempo —
Em sua petição inicial, o consumidor narrou o que segue… Comprou do comerciante, por meio da internet, um fone de ouvido modelo “x”, produzido pela multinacional. Um ano e alguns meses após receber o bem, houve problemas no funcionamento. Levou à assistência técnica. Fora informado que não havia conserto possível por “impossibilidade de abrir e por ausência de peças”.
Em razão disso, pediu um bem novo e a condenação das empresas ao pagamento de danos morais. No polo passivo, o pequeno comerciante e a multinacional.
A ação foi proposta em juizado especial cível, no qual não há custas ou honorários em primeiro grau (art. 55, Lei 9.099/95).
As duas pessoas jurídicas foram citadas para audiência de conciliação e de instrução e julgamento.
Não houve conciliação.
O pequeno comerciante contestou. Disse que cumpriu sua parte no negócio jurídico (entregou o bem). Apontou que o bem funcionou por mais de um ano. Sustentou ausência de qualquer contato do autor para tentar alguma solução para o caso. Disse não ter praticado nenhuma conduta lesiva. Enfatizou que não é importador (afastando o art. 52, CDC). Citou sua impossibilidade lógica de importar a peça. Deixou claro que o fabricante, com representação no Brasil e réu na mesma ação, poderia solucionar o problema. Apontou a falta de razoabilidade de constar no polo passivo da ação. Por último, sustentou que problemas no conserto de um fone de ouvido não causam dano moral. No máximo, estar-se-ia diante de mero inadimplemento contratual.
A multinacional contestou. Sustentou a impossibilidade do conserto pretendido em razão de se tratar de equipamento próprio para mergulho, que somente seria funcional se mantida a exata estrutura de fabricação. Juntou diversos documentos demonstrando sua afirmação. Apontou a irrelevância de peças de reposição em decorrência da impossibilidade de abertura do produto. Sustentou a variação da vida útil em razão das condições de uso. Quanto ao dano moral, apontou a ausência de qualquer tipo de ofensa a direitos da personalidade; que se trata de bem não essencial; que a indústria do dano moral se alimenta de decisões favoráveis a esse tipo de demanda.
Na sentença, houve julgamento de parcial procedência do pedido. Em breves linhas, na ordem elencada na peça, estabeleceu:
(a) existe responsabilidade solidária “tendo em vista que todas as empresas participaram da cadeia de consumo”;
(b) o art. 32, CDC, impõe aos fabricantes e importadores o dever de assegurar peças;
(c) “ainda que fora da garantia legal e/ou contratual, o fabricante precisa garantir o reparo dos produtos viciados”;
(d) a postura adotada pela empresa expõe o consumidor a desvantagem exagerada “e deve ser coibida pelo Poder Judiciário”;
(e) existe responsabilidade objetiva de fornecedores e comerciantes fundada na Teoria do Risco da Atividade;
(f) existência de “flagrante falha na prestação do serviço” e desrespeito a “boa-fé objetiva e segurança”;
(g) houve dano moral, pois as regras da experiência comum apontam “desgaste e embaraço consideráveis ao consumidor” ante a “privação de bem de uso essencial”;
(h) “configurada a responsabilidade das rés, relativamente ao dano moral”.
A condenação foi no valor de R$ 2 mil a título de danos morais. Não houve a condenação em danos materiais.
Sublinhe-se a ausência de análise da situação concreta do pequeno comerciante. E o silêncio sobre o objetivo do produto — uso em mergulho.
CUSTOS DO CASO
O bem que originou a discussão é um fone de ouvido desenvolvido para uso na água. Seu preço de venda: R$ 400,00. Para fins de cálculo, adote-se 15% como margem líquida. Assim, o pequeno comerciante ganha R$ 60,00 na venda de cada produto.
Agora, considerem-se os valores envolvidos na ação. Usando-se a tabela de honorários da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional São Paulo (OAB/SP), como referência, a defesa em primeira instância no juizado especial custa R$ 1.156,23 (mínimo).
Houve condenação em primeira instância no valor de R$ 2 mil.
Assim, arredondando, se o comerciante optasse pelo pagamento, teria despendido no processo R$ 3.156,23. Esse montante equivale à venda de 52,60 fones de ouvido iguais (custo do processo dividido pela margem de lucro).
Se o comerciante optasse pelo recurso, pagaria mais o mínimo de R$ 867,18 em honorários (mais 14,45 fones vendidos). E o dobro disso se quisesse sustentação oral do advogado perante a turma recursal. E isso sem contar as custas processuais.
Dessa forma, imagine-se o pagamento em primeira instância e ausência de recurso autoral (que nada perderia no recurso, pois conta com o benefício da justiça gratuita). O fim da história aponta a necessidade de venda de 53 produtos iguais — sem que haja nenhum tipo de problema ou devolução — simplesmente para cobrir o dispêndio.
LUCRO DO CASO
Por sua vez, o consumidor, autor da ação, pagou R$ 400,00 pelo fone de ouvido. Utilizou-o por mais de um ano. Não se sabe quanto pagou ao advogado. Mas a prática aponta que tais negociações costumam ocorrer em temos de “quota litis” (o advogado nada cobra no início, mas obtém parte do resultado final a título de honorários). Considere-se 30% de honorários, usual em casos semelhantes. Numa condenação de R$ 2 mil, são R$ 600,00 para o advogado e R$ 1,4 mil para o autor. E isso sem contar eventual majoração em recurso.
Portanto, considerando-se apenas o valor obtido em primeira instância, há um lucro de R$ 1,4 mil para o autor. Lembre-se que o fone foi usufruído.
Utilizando-se uma das metodologias para calcular o retorno sobre investimento, conclui-se que o “ROI” da operação atinge 250%. Trata-se de retorno econômico absurdo, comparável ao obtido por agricultores que venceram concurso de produtividade de soja em 2022.
EFEITO MULTIPLICADOR
O cenário descrito permite imaginar o grande potencial desse tipo de situação. Em especial porque parece haver tendência de os tribunais condenarem os fornecedores a indenizar por danos morais em razão de meros descumprimentos contratuais. Em boa parte dos casos, com pouco fundamento jurídico.
Análise de algumas dezenas de casos, em mecanismos de busca de tribunais, pode induzir à crença de que as condenações por damos morais são indevidamente usadas para substituir os danos materiais. Isso porque não se nota critérios claros — numericamente inteligíveis — para os valores. A margem de liberdade tolerada nessas situações é grande. Casos iguais apresentam enormes disparidades de valores.
Veja-se que o valor referente a danos materiais precisa ser comprado, conforme entendimento quase unânime (arts. 392, 402 e 404, CC/02). No caso do fone de ouvido, qual seria o valor do dano material? A integralidade de um equivalente novo? Mas o consumidor usufruiu do bem por mais de ano. Esse uso deveria ser considerado. Na prática, tem-se a impressão de que muitos julgadores acreditam que o “baixo” valor dos danos materiais não seria a solução adequada. E utilizam de artifícios para “corrigir” a situação.
Como exemplo, abaixo ementa de julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Não se refere ao caso aqui discutido.
Risco e solidariedade: “[…] Passagens aéreas. Decolar. Intermediação de venda. Donos suportados em razão de vício do serviço da companhia aérea. Solidariedade configurada. Legitimidade passiva evidente. Descumprimento do contrato. Danos morais configurados […]”. (Recurso Inominado Cível 0005858-66.2020.8.26.0016; julgado em 31/05/2022)
REGRESSO
Voltando à análise da situação do pequeno comerciante…
A solidariedade passiva de duas pessoas perante uma terceira dura até o pagamento. Realizado, pode aquele que pagou exigir compensação do outro, caso tenha fundamento para tanto (art. 283 e 285, CC/02, por exemplo).
Em situações como a apresentada neste artigo, imaginando-se que o pequeno comerciante fora obrigado a pagar tudo, poderia exigir do fabricante ressarcimento. Todavia, esse ressarcimento depende de nova ação judicial. Poderia esse comerciante usar o Juizado Especial? Se estiver enquadrado como microempresa ou empresa de pequeno porto, nos termos da Lei Complementar 123/06, sim. A vantagem seria não precisar pagar custas judiciais na primeira fase. Mas advogados não trabalham de graça. No mínimo, considerando novamente a tabela da OAB/SP, mais R$ 1.156,23 seriam necessários. E haveria discussão sobre a possibilidade de cobrar esses honorários do fabricante.
Usualmente, poucas dessas cobranças ocorrem. Tudo por conta da dificuldade, dos valores envolvidos e do tempo potencialmente despendido. Então, o comerciante acaba absorvendo o prejuízo.
CONCLUSÃO
Avaliando apenas na parte econômica: esse tipo de situação, multiplicada, pode levar à falência pequenos comerciantes. Basta ter em mente os números apresentados e a quase impossibilidade de mensuração dos riscos econômicos da atividade comercial. Lembre-se: um fone vendido por R$ 400,00, com lucro de R$ 60,00, resultou numa condenação de R$ 2 mil. Como incluir esses números na análise de um pequeno negócio?
Não há tese neste artigo. É apenas um relato de caso. Objetiva dar aos empreendedores conhecimento sobre os riscos envolvidos na atividade empresarial no Brasil. Principalmente para os pequenos.