STF tem precedente vinculante cujas razões de decidir estão sob segredo de justiça
Há precedente judicial vinculante cuja íntegra do acórdão que contém a decisão final está sob segredo de justiça no Brasil. Pode-se consultar apenas a ementa da decisão, a tese e os extratos de atas de julgamento. Perceba-se que nem advogados têm acesso ao conteúdo completo da decisão. Salvo, claro, aqueles que atuaram no caso.
Qual o problema? Diversos. O maior é a impossibilidade de se conhecer os argumentos invocados pelas partes e o tratamento a eles conferido pelos julgadores. Em termos simples: não se sabe as razões apresentadas pelas partes nem os motivos pelos quais os julgadores tomaram a decisão final.
A situação refere-se ao ARE 1267879, tema 1103 de repercussão geral (“possibilidade dos pais deixarem de vacinar os seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais“).
Para perceber a gravidade da questão, deve-se considerar o atual sistema brasileiro de precedentes judiciais.
PRECEDENTE JUDICIAL
O sistema jurídico brasileiro filia-se à família romano-germânica (“civil law”). O traço predominante consiste no julgamento dos casos a partir de textos legais escritos. O Parlamento, eleito pelo povo, daria o fundamento do Direito ao legislar. Essa ideia manifesta-se no Princípio da Legalidade. Desde a Constituição do Império do Brasil (1824), existe a previsão desse princípio. “Nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei” era o texto do artigo 179, I, da Constituição Imperial. A fórmula foi repetida no artigo 5º, II, da Constituição de 1988 com pequenas diferenças.
Tradicionalmente, os precedentes eram formados quando invocados como uma das razões de decidir caso posterior. O precedente não nascia “precedente”, mas adquiria a qualificação a partir do seu uso. E não tinham força vinculante. Um juiz de primeiro grau poderia decidir diversamente do Supremo Tribunal Federal (STF) em situação posterior sem sofrer qualquer tipo de represália. Em eventual recurso, poderia caber reforma da decisão, mas com base em argumentos racionais, não no mero fato de haver divergência em relação ao entendimento de outro juiz.
A partir de uma série de alterações na Constituição Federal e nas leis iniciada na Década de 2000, houve alteração no centro de poder da República. O Parlamento cedeu poder seu; retirou poder das instâncias inferiores do Judiciário; e atribuiu as duas parcelas ao STF. Pode-se adotar como marco das mudanças a Emenda Constitucional 45/04, conhecida como “Reforma do Judiciário”. No atual Código de Processo Civil (CPC/15), que entrou em vigor em 2016, houve redução da autonomia de juízes e tribunais. Exemplo é o artigo 927, CPC/15, que determina a observância por juízes e tribunais de diversos tipos de julgamentos das instâncias superiores. A isso acrescente-se decisões do STF que aumentam o próprio poder (ADI 3406, por exemplo). Não serão esmiuçadas aqui para manter o tema principal deste texto.
Assim, o sistema brasileiro passa a adotar e a adaptar institutos da “common law“. Todavia, sem que na prática cotidiana se veja o fundamental uso de técnicas como análise da “ratio decidendi” e aplicação do “distinguishing“.
Grosseiramente, o resultado das reformas no Brasil parece ter sido a outorga do poder de criar normas gerais e abstratas (“legislar”, em última análise) a algumas esferas do Judiciário. Referindo-se à norva forma de uso de precedentes, pontuou Lenio Streck: “O que nós temos no Brasil? Teses, que não passam de enunciados ou enunciações. […] Teses […] de tribunais superiores, levem o nome que for, que já “nascem” com esse viés prospectivo. […]”.
APLICAÇÃO DO PRECEDENTE
Explicado o sistema, perceba-se que a aplicação lógica do precedente a casos posteriores demanda a avaliação dos fundamentos geradores do julgamento. Em outras palavras, o juiz deve avaliar argumentos e aspectos fáticos do caso anterior e do caso atual para concluir se a questão deve ou não ser julgada do mesmo modo.
Mas há outras duas situações importantes.
Em primeiro lugar, os advogados necessitam de acesso às razões dos julgamentos para avaliar os casos apresentados por seus clientes. Os motivos das decisões são parte fundamental de seu trabalho. A partir deles conseguem ponderar se a situação concreta tem particularidades capazes de conduzir a julgamento diverso.
Em segundo lugar, espera-se que os cidadãos tenham também acesso aos motivos de decisões capazes de lhes obrigar a determinado comportamento. É um dos mínimos para justificar a estrutura social denominada “Estado Democrático de Direito”.
Retomando o raciocínio inicial… Diz a tese que vincula a todos no ARE 1267879: “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.“
Em outras palavras: a vacinação obrigatória para menores é constitucional, cumprido um dos três requisitos, e não viola a liberdade de consciência, a convicção filosófica ou o poder familiar dos pais.
A quantidade de argumentos favoráveis e contrários à vacinação sugere que pessoa interessada no caso tenha acesso ao conteúdo discutido para formar qualquer opinião e adequar seu comportamento. Todavia, terá que cumprir a determinação geral, contentando-se em ler uma ementa de lauda e meia; e um enunciado de tese.
E essa situação, como dito, também dificulta o trabalho dos advogados. Comparações somente ocorrem quando se conhece os objetos avaliados. Não sabendo precisamente o que foi considerado no julgamento precedente, impossível sustentar que caso concreto futuro mereça solução diversa. O segredo de justiça impossibilita o distinguishing.
SIGILO PROCESSUAL
Falando de problemas relativos ao sigilo em processos judicias, necessário recordar que há diversos casos na mesma situação.
No momento, o mais famoso ainda é o inquérito 4.781 (Inq 4.781), que tramita sigilosamente no STF. Foi aberto por determinação do então presidente da corte, Ministro Dias Toffoli, para investigar notícias falsas. Ele encarregou da relatoria o Ministro Alexandre de Morais. Há reclamações de advogados de investigados sobre falta de acesso aos autos. Além disso, numa época de processos em trâmite por meio eletrônico, o Inq 4781 existe somente em papel — o que também dificulta a atuação de advogados.
Por fim, bom lembrar que se trata de caso que parece fazer o Brasil retomar ao sistema inquisitivo: vítima, investigador, acusador e juiz são a mesma pessoa (leia mais aqui e aqui). E, da decisão, não há recurso para outro tribunal brasileiro. Aliás, na ADPF 572, julgando parte dessa questão, decidiram 10 dos 11 ministros da corte que o inquérito 4781 é constitucional.