Tráfico privilegiado deve ser afastado pela acusação
Há novo precedente vinculante relacionado ao tráfico de drogas no Brasil. Os ministros da Terça Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiram recentemente que os julgadores não podem utilizar inquéritos ou ações penais em curso para impedir o reconhecimento do “tráfico privilegiado”.
Chama-se de tráfico privilegiado a situação prevista no art. 33, §4º, Lei 11.343/06. Ali consta que em alguns casos de tráfico de drogas, as penas dos condenados poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços. Esse abatimento pode ser muito útil quando se considera que as penas por esse crime podem variar de cinco a 15 anos. Qualificam-se para a diminuição os réus primários, com bons antecedentes, que não se dediquem a atividades criminosas, nem integrem organizações criminosas.
Entenda-se o significado de cada um dos termos…
Primário, no Brasil, é o réu que não sofreu condenação penal, transitada em julgado, antes da data do cometimento do crime em análise. Um segundo crime, após aquele em análise, não afasta a “primariedade”. Extrai-se esse conceito a partir da definição de reincidência apresentada pelo Código Penal. Interessante perceber que após cinco anos do cumprimento ou da extinção da pena a pessoa volta a ser “primária”.
“Bons antecedentes”, por sua vez, consiste em conceito construído em sentido inverso. É uma forma estranha; mas assim optaram os legisladores. Maus antecedentes são todas aquelas condenações transitadas em julgado que não podem ser usadas, no julgamento, para qualificar a reincidência. Possuem dois significados. O primeiro, no caso de uma pessoa após o transcurso do prazo de reincidência. Assim, apesar de o indivíduo voltar a ser considerado primário, será adjetivado como portador de maus antecedentes. O segundo significado, em situações de “multireincidência”. Se a pessoa, reincidente, comete dois ou mais crimes julgados ao mesmo tempo, o primeiro crime será usado pelo juiz para qualificar a reincidência; o segundo, será computado como “mau antecedente”.
Dedicar-se a atividades criminosas consiste em conceito autoexplicativo. Aborda aquelas pessoas que realizam condutas penalmente puníveis como meio de usual de vida. Seu “trabalho”, sua “empresa” é o exercício de atividades criminosas.
Por último, integrar organização criminosa deve ser entendido como participar de uma associação de quatro ou mais pessoas, estruturalmente ordenada, caracterizada pela divisão de tarefas, com objetivo de cometer infração penais com penas máximas superiores a quatro anos ou de caráter transnacional.
Explicados esses requisitos, perceba-se que o precedente vinculante impõe um ônus probatório à acusação. A partir dele, não caberá afastar o benefício em razão da existência de outros inquéritos ou de ações penais. Será necessário demonstrar, por quaisquer meios de prova, a existência dos motivos legalmente previstos para negar a redução do tempo de pena.
Pode-se resumir a situação à afirmação de que o réu dever ser considerado inocente até prova em contrário, mesmo quando se avaliar a concessão de benefícios penais.
O enunciado da tese firmada foi: é vedada a utilização de inquéritos ou ações penais em curso para impedir a aplicação do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06. Trata-se do “tema repetitivo 1139”.
MUDANÇA DE ENTENDIMENTO SOBRE TRÁFICO PRIVILEGIADO
Importante perceber que todo o exposto consiste em mudança de entendimento sobre questões envolvendo o tráfico privilegiado. Havia decisão pacificada na Terceira Seção do STJ (EREsp 1.431.091-SP) sustentando a possibilidade de uso de inquéritos ou de ações penais para formar convicção sobre a dedicação a atividades criminosas. Todavia, pelo menos desde o ano de 2018, diversas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) foram prolatadas em sentido diverso. Portanto, o STJ apenas aderiu ao entendimento da corte superior.
ENTENDIMENTOS SOCIOLÓGICOS
Existem diversos entendimentos a respeito de drogas no mundo. Em integração entre sociologia e Direito, costuma-se pensar em pelo menos três grandes grupos.
O “Modelo Americano”, de tolerância zero, pugna pela “guerra às drogas”. Pelo menos desde o Harrison Narcotics Tax Act, o país tenta alternativas para desestimular ou impedir o consumo. Após várias tentativas, inclusive a Décima Oitava Emenda Constitucional, nos Anos 1970 iniciou a “guerra”. Essa abordagem considera a droga um problema criminal. Pressupõe ser necessária a abstenção do contato com drogas. Mas, atualmente, sofre mitigações mesmo nos EUA. Veja-se, por exemplo, a liberação de consumo de maconha em alguns estados.
Por outro lado, o chamado “Modelo de Liberalização” considera a questão como um problema econômico. Seus defensores sustentam que devem ser livres as atividades para as quais haja demanda. Além disso, baseiam-se no direito pessoal de exercer escolhas.
Por último, há o “Modelo Europeu” de redução de danos. Procuram seus defensores minimizar as consequências nefastas do uso das drogas. Oferecem tratamento, seringas para o uso etc. Todavia, a conduta de tráfico de drogas continua a ser crime.